CELSO FERRO 

 

ADVOCACIA E CONSULTORIA ESPECIALIZADA

 

A APLICAÇÃO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL EM DECISÕES JUDICIAIS

                  

               De acordo com o jurista Wolfgang Hoffmann-Riem autor da obra Teoria do Direito Digital, a transformação digital progride a passos largos, exsurgindo no­vos desenvolvimentos, que incluem novos projetos de Lei e decisões judiciais, porém, sobretudo, inovações tecnológicas.[1]

 

                      Prossegue o autor dizendo que atualmente as capacidades de armazenamento e de análise pelos com­putadores estão sendo expandidas e as possibilidades de aplicação e desempenho dos algoritmos estão crescendo e mudando rapidamente. A chamada inteligência artificial é particularmente importante para isso. Esse termo refere-se em particular ao esforço de reproduzir digitalmente estruturas de decisão semelhantes às humanas, ou seja, de projetar um computador de tal forma e, em particular, de programá-lo usando as chamadas redes neurais[2] e que possa processar os problemas da maneira mais independente possível e, se necessário, desenvolver ainda mais os programas utilizados.[3]

 

                   Inteligência Artificial (IA), algoritmos, aprendizagem de máquina, são termos muito comuns na Era digital, visto que são as tecnologias atuais, responsáveis por profundas mudanças na sociedade, que trazem mudanças no modo de vida dos indivíduos, nas empresas, governos, sendo objeto de intensos estudos e debates no meio acadêmico.

 

                Trata-se de uma notável revolução, resultado de fatores como a velocidade, conectividade, intangibilidade[4], que reflete complexidade perante o volume das informações e a convergência tecnológica das ações humanas, modificam as estruturas dos negócios, da economia, da sociedade e provocam transformações nos procedimentos e em sistemas nas áreas do executivo, legislativo e judiciário.

 

                   As ferramentas de inteligência artificial, estruturadas ou não pela técnica do machine learning[5] já permitem que muitas decisões sejam tomadas por máquinas de forma automática. Esses modelos de IA com base em algoritmos de aprendizagem, já nos permite deduzir sobre a possibilidade de uso de algoritmos para proferir decisões judiciais. assim dizendo, a decisão, definição e programação que pode ser feita pelos próprios algoritmos. Com esse aprendizado dinâmico a máquina tem a capacidade de definir ou modificar regras de tomada de decisão de forma autônoma[6]

 

                  Diante desse quadro, decisões judiciais automatizadas, com base na IA, demonstram ser uma realidade eminente e seguramente sem nenhuma possibilidade de não ocorrer em pouco tempo. Os principais argumentos favoráveis que possivelmente motivam os pesquisadores na disposição de desenvolver a automatização de decisões judiciais é a celeridade e o aumento da objetividade, além de possibilitar a qualidade, diminuição ou remoção do erro humano.

 

                        Fernanda Borghetti Cantali e Wilson Engelmann expressam que muito se questiona sobre o decisionismo que assola o Poder Judiciário brasileiro, por exemplo. Existem inúmeras decisões judiciais que evidenciam comportamentos não cognitivistas por parte dos julgadores, os quais decidem com base em opiniões pessoais, absolutamente subjetivas, bem como com base na emoção. Decisões judiciais devem ser proferidas com base no Direito, a partir de critérios racionais, técnico-jurídicos e objetivos.[7]

 

                       Na avaliação do ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luis Felipe Salomão[8],  o movimento de digitalização da Justiça é cada vez mais necessário para a boa gestão dos tribunais, com eficiência, celeridade e qualidade, diante do elevado volume processual. A celeridade está entre as principais motivações dos tribunais para a implementação de sistemas de Inteligência Artificial, condição esta que proporciona o descontingenciamento dos processos e a diminuição da morosidade.

 

                 O conhecimento produzido sobre uso da IA na justiça e os estudos lançados até o momento, demonstram que os sistemas existentes nos tribunais entregam resultados em um tempo extremamente rápido, aperfeiçoando a governança do judiciário e as inciativas que caminham aceleradamente no sentido de possibilitar num futuro próximo a automatização das decisões.

 

              O CNJ publicou a resolução 332/2020 para tratar, entre outros assuntos, da governança na produção e uso de Inteligência Artificial na justiça. Estabelece diretrizes aos órgãos do poder judiciário dispondo sobre a ética, a transparência e a governança no uso de inteligência artificial. Adota os cinco princípios contidos na Carta Europeia de Ética sobre o Uso da Inteligência Artificial em Sistemas Judiciais: (i) princípio do respeito aos direitos fundamentais; (ii) princípio da não-discriminação; (iii) princípio da qualidade e segurança no processamento de decisões e dados judiciais; (iv) princípio da transparência, imparcialidade e justiça; (v) princípio do controle do usuário[9].

 

                     No Brasil, o presidente do Senado Federal, após um minucioso trabalho técnico de estudo e compilação de diversas proposições legais sobre a IA, protocolou o Projeto de Lei 2338/2023, que foi desenvolvido por uma Comissão de notáveis juristas, responsável pela elaboração de um substituto sobre o uso da Inteligência Artificial no Brasil.

 

                     O artigo 1º do projeto “estabelece normas gerais de caráter nacional para o desenvolvimento, implementação e uso responsável de sistemas de inteligência artificial no Brasil, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais e garantir a implementação de sistemas seguros e confiáveis, em benefício da pessoa humana, do regime democrático e do desenvolvimento técnico científico”. Além disso, define conceitos e define regramentos sobre os Direitos, Categorização dos Riscos, Governança dos Sistemas de IA, Responsabilidade Civil, Códigos de Boas Práticas e De Governança, Comunicação de Incidentes Graves e Supervisão e Fiscalização.

 

                   O produto final, mais denso, contempla a elaboração de um texto legal, com a mais avançada tecnicidade com diretrizes e fundamentos para a proteção da pessoa humana, fixando ferramentas de governança, responsabilidade civil, uma regulação baseada em riscos e uma modelagem regulatória de direitos.

 

           A atuação de programas de Inteligência Artificial, associados a uma supervisão humana tem sido a maioria dos entendimentos para aplicação no Poder Judiciário brasileiro. Isso ocorre, em razão da necessidade de que haja um aprendizado do sistema e a possibilidade de aperfeiçoamento das decisões, do ponto de vista da eficiência e também, pela busca de uma aplicação justa e ética da Inteligência Artificial.

 

                     A necessidade de supervisão humana significa dizer que um sistema de Inteligência Artificial, a ser utilizado na tomada de decisões judiciais, não pode ser realizada completamente de maneira autônoma. O sistema deverá promover ações intercorrentes do julgador de forma que possa corrigir ou aperfeiçoar a fundamentação e novas decisões. Assim, a supervisão humana deve ser exigível e compatível de acordo com determinadas situações de complexidade na contenda judicial.

 

              De acordo com Regina Rossetti e Alan Angeluci a Inteligência Artificial e seus algoritmos conseguem trazer muitos benefícios, além de trazer novas soluções, celeridade, economia e eficiência, aos diversos problemas complexos; podem, em outra perspectiva, conduzir a resultados nocivos, inesperados, sobretudo quando em seu processo de execução prescinde de supervisão humana.[10]

 

                 MARTINS (2022) assevera que de forma simples, é possível descrever o uso de programas de computador para auxiliar em processos decisórios, como uma expansão na capacidade de leitura de peças processuais, combinada com um tratamento de dados para geração de sugestões. O autor cita como exemplo os robôs utilizados nos tribunais, tais como: “Athos” e o “Sócrates” do Superior Tribunal de Justiça e o “Victor” do Supremo Tribunal Federal. O uso da inteligência artificial permite, por exemplo, a coleta de dados dos principais assuntos que chegam aos tribunais e a organização das informações por temática, inclusive com a disponibilização de minutas de decisão, propiciando a otimização das atividades judiciárias.[11]

 

                   O autor prossegue explicando que uma boa parte do processamento judicial tradicional ocorre por meio de uma análise de casos, com foco na analogia, para a produção de uma peça decisória (despacho, sentença ou voto em acórdão) baseada em casos pretéritos. Existe, por certo, algum espaço para que os magistrados possam inovar. Contudo, tal espaço é, do ponto de vista processual, restrito aos limites dos pedidos das partes. O magistrado se torna mais experiente, na medida em que julga mais casos. Assim, cada vez mais ele conhecerá o potencial de temas aplicáveis aos diversos casos que chegam ao seu exame. É possível indicar que os magistrados têm um caminho de aprendizado.[12]

 

                     A partir dessas anotações, entendemos que a discussão ainda será muito ampla, ou seja, se para dar a designação sobre o julgamento por humanos tem vantagem, ou não, em comparação a decisão por Inteligência Artificial. Ainda de acordo com O Ministro Humberto Martins, o julgamento por humano abre espaço para a criatividade e inserção na decisão de elementos que não tem origem jurídica. De qualquer forma, a melhor solução é submeter a análise das informações ao escrutínio da supervisão do magistrado e a necessária revisão da decisão automatizada sugerida. Na acepção do Ministro o trabalho conjugado entre o magistrado e a máquina parece ser, no momento, o caminho mais promissor, para que haja a concretização da desejada efetividade, considerando ainda com extrema relevância, as questões éticas envolvidas. 

 

                        Por fim, vivenciaremos em breve, um inevitável impacto disruptivo, o momento em que iremos implementar e utilizar os sistemas tecnológicos dotados de aprendizagem, máquinas que de forma eficaz executam tarefas, e até certo ponto, com ações cognitivas capazes de atuar em decisões judiciais.  Além do mais, a substituição do processo cognitivo humano por um processo cognitivo artificial deverá superar também as esperadas resistências da inovação e mudança de uma cultura, pessoal, organizacional e da própria sociedade.

 

                    Ademais, é inadiável ultrapassar de vez a visão convencional da magistratura e da Justiça e compelir o entendimento de que o juiz precisa repensar sobre seu papel de uma sociedade contemporânea, que caminha para a quarta revolução industrial,[13] onde gestores progridem na constante busca pela efetividade.  O momento é de pensar em soluções para auxiliar o juiz em “dar conta” do volume de processos, no momento das decisões e em tempo razoável. A prestação jurisdicional, na era digital, com o uso da Inteligência Artificial é um caminho sem volta, e inevitavelmente a automatização das decisões judiciais irá ocorrer, marcará o direito processual de hoje e o de amanhã.

 

 

[1] HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. Teoria Geral do Direito Digital: Transformação Digital Desafios para o Direito. Editora Forense. 2ª Edição. 2021.

[2] Uma rede neural é um método de inteligência artificial que ensina computadores a processar dados de uma forma inspirada pelo cérebro humano. É um tipo de processo de machine learning, chamado aprendizado profundo, que usa nós ou neurônios interconectados em uma estrutura em camadas, semelhante ao cérebro humano. A rede neural cria um sistema adaptativo que os computadores usam para aprender com os erros e se aprimorar continuamente. As redes neurais artificiais tentam solucionar problemas complicados, como resumir documentos ou reconhecer rostos com grande precisão.

[3] HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. Op. cit.

[4] DAVIS, Stan.; MEYER, Christopher. Blur: A Velocidade Da Mudança Na Economia Integrada. Rio de Janeiro: Campus, 1999.

[5] O aprendizado de máquina é um ramo da inteligência artificial baseado na ideia de que sistemas podem aprender com dados, identificar padrões e tomar decisões com o mínimo de intervenção humana.

[6] ROSSETTI, Regina e ANGELUCI, Alan. Ética Algorítmica: Questões e Desafios Éticos do Avanço Tecnológico da Sociedade da Informação. Sielo Brasil.

[7] CANTALI, Fernanda Borghetti; ENGELMANN, Wilson. Do Não Cognitivismo dos Homens ao Não Congnitivismo das Máquinas: Percursos para o uso de decisões judiciais automatizadas. Revista Jurídica Portucalense, n. 29, 2021 Disponível em: https://revistas.rcaap.pt/juridica/article/view/21958. Acesso em: 12 out. 2022.

[8] [8] Luis Felipe Salomão é Ministro do Superior Tribunal de Justiça. Coordenador dos trabalhos sobre a Tecnologia Aplicada à Gestão dos Conflitos no Âmbito do Poder Judiciário Brasileiro.

[9] A Resolução CNJ nº 332, de 21 de agosto de 2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3429. Acesso em: 25 mai. 2023.

[10] ROSSETTI, Regina e ANGELUCI, Alan. Ética Algorítmica: Questões e Desafios Éticos do Avanço Tecnológico da Sociedade da Informação. Sielo Brasil.

[11] MARTINS, Humberto. Reflexões Sobre a aplicação de Inteligência Artificial no Apoio às Decisões Judicias no Superior Tribunal de Justiça. In: ARAÚJO, Valter Shuenquener de; GOMES, Marcus Lívio, (coordenação); CANEN, Doris (organização). Inteligência Artificial e Aplicabilidade Prática no Direito. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2022

[12] MARTINS, Humberto. Op. cit.

[13] Quarta Revolução Industrial é uma expressão que engloba algumas tecnologias para automação e troca de dados e utiliza conceitos de Sistemas ciber-físicos, Internet das Coisas e Computação em Nuvem. O foco da Quarta Revolução Industrial é a melhoria da eficiência e produtividade dos processos.